quinta-feira, 31 de maio de 2007

UM POBRE DIABO CHAMADO DEMÔNIO

“O cara mais underground que eu conheço, é o diabo...”
É assim que começa a canção “Heavy Metal do Senhor”, do compositor Zeca Baleiro. Underground significa “por baixo” que, aplicado na gíria, designa uma pessoa apagada moral e socialmente. De fato, este é o retrato do diabo na atualidade, apesar dos esforços de algumas religiões em mantê-lo vivo e ativo.
Na mitologia arcaica, os demônios, do grego dáimon, eram espíritos intermediários entre os deuses e os homens. Esses espíritos podiam ser bons ou maus. Nos textos bíblicos mais antigos, Satã aparecia como um auxiliar da justiça divina (Zacarias 3, 1-2). No Novo Testamento, o substantivo comum tornou-se nome próprio, sendo Satã apresentado como Inimigo de Deus (1 Cron. 21, 1). Mas em hebraico, satã significa “adversário”, e esse adversário era terrestre, não celeste. Em 1 Samuel 29, 4 e em 1 Reis 5, 11, o contexto é militar. Já em 2 Samuel 19, 17-24 a palavra é sinônimo de “acusador”. Mais tarde, o termo designava um anjo a serviço de Deus, cuja função era acusar os homens no tribunal celeste. Ao apontar as falhas de Jó, o satã (ainda não transformado em Satã) estaria agindo apenas como um anjo observador da Justiça Divina. No desejo de exonerar esta Justiça de certos flagelos que se abateram sobre Israel, os autores do Antigo Testamento carregaram nas cores sombrias para pintar o diabo (sem trocadilhos, claro). Porém, ele só assumiria o caráter de figura temerável nos primórdios da Era Cristã: o Novo Testamento lhe dá sua face maléfica. É no livro do Apocalipse que encontramos a menção da queda de Satã, por causa do sangue vertido pelo Cordeiro.
Em 1215, reunida pelo Papa Inocêncio III, durante o Concílio de Latrão, a Igreja legislou acerca da confissão, tornando-a obrigatória, e os fiéis tinham que revelar todos os detalhes de sua vida aos padres. Evidentemente, ampliou-se a culpabilização dos fiéis. Era preciso procurar em si o pecado, pecado este suscitado pelo Diabo. De certa forma, Inocêncio III legitimara o procedimento inquisitorial, pois o Concílio de Latrão estimulou as investigações contra os hereges, condenando-os à morte. Durante a Idade Média, os próprios Papas mantinham Astrólogos e Alquimistas em sua corte, e a Igreja condenava os magos e os feiticeiros, mas não os perseguia, pois bruxos e bruxas não passavam de tolos iludidos pelo Diabo. O Tribunal da Inquisição, nascido da constituição Excommunicamus, do Papa Gregório IX, é inicialmente concebido para combater as heresias. Com a mudança do clima intelectual da Europa, a percepção da feitiçaria por parte das elites sociais se modificou. De tolerada, e até mesmo compartilhada, transformou-se em medo e terror. Foi criada então a “Demonologia” por alguns clérigos (e especificado por Santo Agostinho em A Cidade de Deus) que viam Satã no domínio das “coisas do mundo” e que, para vence-lo, seus aliados, os feiticeiros, deveriam ser eliminados. Entre 1428 e 1447 aconteceu a primeira caça às bruxas, nos Alpes. Nas regiões disputadas por poderes políticos e religiosos concorrentes, a caça às bruxas encontrou terreno fértil. Quando retomada no início do século XIV, a ofensiva contra o Demônio não provinha da Inquisição nem da Igreja, pois a demonologia se tornara uma terrível arma política: a caça às bruxas fazia parte de um processo de aculturação, diabolizando a cultura camponesa tradicional.
O Ocidente vivia duas grandes reformas religiosas: a Protestante e a reformulação da Igreja Católica. Assim, a identificação da bruxaria promovida pela Inquisição se estendeu por toda a Europa e atingiu as Américas, transpondo para as colônias o imaginário ligado às “práticas diabólicas”. No Brasil, o sincretismo religioso era alvo do Santo Ofício. Os calundus de origem africana, por exemplo, eram entendidos como um novo Sabá (assembléia de bruxos e bruxas realizados na Idade Média, sob a presidência de Satanás).
A decadência do Diabo inicia-se no século XVII, com a teologia perdendo espaço para causas materiais. Intelectuais se voltam para Voltaire e Locke. Nietzsche decreta a “morte” de Deus. Sartre acredita que “o inferno são os outros”. Com a crise Divina, o Diabo sofre nova queda. A partir do século 18, o avanço científico desferiu golpes duros em Satã. No século XIX, médicos apontam os micróbios como causas de muitos males antes creditados ao maligno. Além disso, muitas religiões que não crêem no Diabo se expandiram. Como o judaísmo e o Islamismo. Em 1857, Allan Kardec afirmava, em “O Livro dos Espíritos”, que era “ilógico e contraditório que quem faz da bondade um dos atributos essenciais de Deus suponha haver Ele criado seres destinados ao mal e a praticá-lo perpetuamente”.
Mesmo com o crescimento das Igrejas Pentecostais, trazendo ampla divulgação do Diabo em seus canais televisivos, aonde Satanás brilha como estrela dos exorcismos na madrugada, é visível notar que o inferno faliu. Apesar de revestirem a lenda com a “autoridade” religiosa dos pastores, o fato é que o Demônio não é mais o grande inimigo de Deus, o imensurável mal cósmico, semeador do desespero. O Diabo, agora, é origem dos pequenos danos da vida: o alcoolismo, o adultério, o tabagismo, a gula... O Fiel nunca erra, a culpa é sempre de Satã, tornado justificativa para todas as nossas faltas. Como diz o historiador brasileiro Leandro Karnal, da Unicamp/SP, “Satanás passou do atacado para o varejo”. Ou, no cancioneiro exato de Zeca Baleiro, o sujeito é mesmo muito Underground...

Um comentário:

Ricardo Alves da Silva disse...

Pois não é que o Diabo realmente é um pobre diabo... de grande adversário de Deus passou a ser mero provocador de nossas pequenas mazelas. Isso fora da Doutrina Espírita, pois, apesar de nos esclarecer sobre as influências a que estamos expostos, nos esclarece que não podemos terceirizar a responsabilidade pelas nossas fraquezas.